Uma horta em tempos de pandemia ou como errar cada vez melhor

Sempre gostei desta ideia do Samuel Becket: “Tentar de novo. Falhar de novo. Falhar melhor”. Acredito no erro, na imperfeição e no acaso e como tantas vezes se conjugam e determinam soluções bem mais interessantes que as delineadas racionalmente.

Já não sei onde apanhei esta noção – creio que é do Ernst Gotsch da agricultura sintrópica* –  de que quanto mais ordenada e clean é uma zona verde mais pobre ela é enquanto ecossistema. Ao contrário, uma zona aparentemente caótica será um sistema mais organizado e equilibrado, mais sintrópico do ponto de vista ecológico  – um espaço onde a vida se manifesta de forma mais diversa, complexa e resiliente.

O espaço do erro e do acaso é o espaço da descoberta, da criação e da liberdade. Um espaço não de domínio e subjugação da natureza pelo homem e do homem pelo homem mas um espaço de co-habitação, de empatia e de partilha.

Daí que ao longo destes 4 anos tenho falhado bastante e tentado de novo e progressivamente  falhado um bocadinho melhor ou só falhado de forma diferente.  E se a terra sempre me deu leveza, nestes últimos tempos foi ainda mais essencial como  espaço de resiliência e liberdade:  de uma forma paradoxal as raízes deram-me asas.

*VER  https://agendagotsch.com/pt/what-is-syntropic-farming/

3 galinhas. 173 dias. 135 ovos.

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Na casa dos meus avós da cidade havia um galinheiro no quintal. Lembro-me de afagar os pintainhos, varrer a capoeira com pequenas vassouras à minha medida e fazer para as galinhas migas de couve que depois ficavam esquecidas a fermentar em velhas latas de chá.  Depois os meus avós mudaram de casa e acabaram-se as latas de chá nauseabundas, as gemadas na cozinha e a galinha de cabidela (para os adultos) dos almoços de domingo.

As galinhas têm qualquer coisa de encantatório e simultaneamente de divertidamente absurdo – é vê-las em corrida desenfreada umas atrás das outras sempre que encontram um caracol por entre as ervas ou que na remessa da marmita cá de casa (leiam-se restos) vai uma cabeça de peixe, tripa ou outro manjar dos deuses do mundo galináceo. Ou como me fitam com aquele olhar lateral meio tresloucado sempre que entro no galinheiro com o molho de couves.

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Hoje, ainda sem o trator de galinhas feito, resolvi abrir-lhes a porta do galinheiro e andaram a manhã  entretidas a esgravatar no ervaçal, comigo sempre de olho não se fossem extraviar na direção das couves  e devorarem-nas enquanto o diabo esfrega um olho. Na realidade são bichos extraordinários – para além dos óbvios ovos, são verdadeiras máquinas de compostagem e lavradoras incansáveis. Infelizmente por estas bandas não posso deixá-las andar em completa liberdade e não tenho alternativa senão tê-las no galinheiro e ir experimentando estes regimes de liberdade provisória quando estou por lá.

Quanto à insinuação do Zé Cruz da futura cabidela para jantar de amigos garanto que a Gertrudes, a Clarisse e a Carlota jamais constarão de qualquer menu de degustação para papilas humanas e espero bem  inumanas.

Cartografias (sub)cutâneas

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As marcas da terra gravam-se no corpo. Bolhas, vergastadas, picadas que delineiam um mapa cutâneo onde percorro a história dos dias. Bolhas, vergastadas, picadas que se vão fundindo e entranhando na pele camada a camada, epiderme, derme, hipoderme, carne, músculo, artérias e veias, tornando-se um fluxo, um batimento do coração, uma sinapse, uma memória. A minha genealogia simultaneamente rural e urbana transcrevendo-se na minha história, naquilo que sou.  Urbana e rural, incapaz de me definir nómada ou sedentária*, assumo uma espécie de transumância oscilando entre o caminho e o lugar, suspensa  entre pedra e água,  árvore e nuvem. As marcas da terra gravam-se no corpo e desvanescem-se e criam uma cartografia invisível, um  mapa interior onde cabem os caminhantes, viandantes, giróvagos, os pastores, os corredores, os viajantes, os deambuladores, os errantes, os passeantes, os agrimensores, mas também os enraizados, os imóveis, os petrificados e os empedernidos*.

* Michel Onfray in Teoria da viagem

 

1002 Kg. 802 dias. On a toujours raison de se révolter.

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Estou cada vez mais convencida da importância da permacultura enquanto filosofia e prática e os resultados estão à vista – desde 11 de junho de 2016 colhi  1 tonelada (1002  Kg) de vegetais e alguma fruta o que dá uma média de 1,250 Kg/dia. E isto com a certeza de que ainda não consegui nem de longe o melhor aproveitamento possível do solo ocupado, que em média neste período rondará neste momento, penso eu, cerca de 300m2. Isto significa  que 1 m2 de solo produziu em média anualmente cerca de 1,5 Kg e isto não tendo ainda eu conseguido gerir o espaço de forma realmente biointensiva e atingido o potencial de produção que poderá ter. Tudo isto sem qualquer pesticida, herbicida ou adubo  inorgânico.

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O sistema claramente funciona e os contratempos resumem-se a uma ou outra pequena praga – as eternas lesmas e caracóis, meia dúzia de pulgões e pouco mais, coisas que mais que causar grande mossa alimentam o equilíbrio dinâmico do ecossistema. As doenças também não registam grande historial apenas o míldio das cucurbitáceas (pepinos e curgetes) normal em final de estação ou com tempo mais instável como este ano e que não afeta grandemente a produção. Bem… e as eternas ervas mas mesmo aí a falha foi minha (e das condições climatéricas vá) uma vez que este ano descurei coberturas do solo que prevenissem o seu aparecimento…

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Ontem a contracapa da revista que o meu amigo Zé Moreira lia ostentava a frase “On a toujours raison de se révolter” (Guy Lardrou). A mim parece-me claro e inquestionável mas mais que um call for thinking a frase surgiu-me como uma inspiração para um call for action – assente sobre os princípios da permacultura acredito que “trabalhar a terra” pode ser uma forma de revolução: Coexistes. Partilhas. És e deixas ser. A terra continua a dar-me leveza mas dá-me igualmente uma feroz vontade de combater ficções impostas para benefício de uma minoria.

Esta é  a minha revolução.

 

Chegaram as meninas :)

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Da esquerda para a direita: Gertrudes Má Pinta, Carlota A Esbaforida e Clarice Cara de Anjo

Depois da construção do galinheiro em contrarrelógio – versão beta está bem de ver e mesmo assim só possível com a ajuda inestimável do Luís  – cá estão as 3 poedeiras para me alegrar os dias e roer as unhas à noite em cuidados se o galinheiro resiste à ronda das raposecas.

Ainda antes de me virem parar às mãos a coisa começou mal: as 3 poedeiras eram de uma familiar que mas ofereceu uma vez que se vai  mudar para um apartamento. Acontece que  dois ou três dias antes de virem para a nova casa duas delas foram precisamente vítimas de uma raposa a monte. Salvou-se a galinha choca fechada na capoeira. Generosamente substituídas pela Maria Cândida lá vieram entretanto outras duas para fazer companhia à choca, agora batizada de Gertrudes Má Pinta uma vez que resolveu armar-se em patroa da nova capoeira e anda bica que bica nas outras duas – Carlota A Esbaforida (foge a todo o vapor da Gertrudes) e Clarice Cara de Anjo  (é só swag,  não é nada com ela mesmo quando é bicada).

Para já não há sinal de assalto ao galinheiro nem de raposa nem de doninha, que pelo que me disseram os locais também gosta de passear pela vizinhança. Espero que esta biodiversidade ande mais ao largo e me deixe as bichas em paz….

Plantar batatas, colher pedras. E ainda batatas na banheira.

Plantadas as batatas de abril (há coisa de 1 mês e picos), já colhi entretanto as batatas “do seco” que plantei em inícios de janeiro. O problema é que por cada batata colhi à vontade 20 ou 30 pedras (não, não estou a exagerar), algumas de boa envergadura (as pedras não as batatas…). Isto somado aos quilos de pedra que tirei quando as plantei dá para começar a perceber a pedregosidade desta zona da horta. Este é um dos motivos porque em vários canteiros não posso usar (para já) a técnica do no dig (que muito resumidamente consiste em não cavar a terra para evitar ao máximo perturbar a estrutura e vida do solo questão que abordarei noutro post) que já comecei a aplicar noutros canteiros. Enquanto tenho que suar as estopinhas  a recolher pedra aproveito para aplicar um  dos princípios da permacultura de que o problema é a solução. Ora vai daí que este monte de pedregulhos está agora a “pavimentar” uma série de zonas da horta da zona da compostagem à bordadura do futuro charco ajudando a controlar o aparecimento de ervas menos desejadas, vulgo ervas daninhas.

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Entretanto  aproveitando uma  banheira velha fiz outra experiência cobrindo as batatas  de restos orgânicos mais ou menos compostados e algum estrume num fundinho de terra. Viçosas parecem, a ver vamos.

Ah não estranhem a miscelânea cromática das batatas da imagem – o gosto de experimentar coisas diferentes que partilho com o meu querido compadre Rafael dá-nos para isto – batatas de polpa azul,  vermelha, raiada… variedades antigas que foram caindo em desuso e que agora lentamente começam a entrar em circulação – nada como a diversidade.

Há monstros na horta

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Andava eu calmamente a preparar um canteiro para plantar cebolo quando ao tentar arrancar uma pé de couve espigado vi um pequeno ponto vermelho e dei por esta coisa meia enterrada e aninhada junto da raiz da dita couve.

Não sei se estava mais morto que vivo ou ainda em hibernação (fiquei a saber que os sapos hibernam) mas não tugiu nem mugiu quando lhe dei uns toques com um pauzito.

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Apesar do seu aspeto de monstro medieval – não ficava nada mal junto da outra bicharada grotesca de uma fachada gótica – na realidade é um bicho bem útil na horta, papando lesmas, moscas e outros insetos que tal. Lá o transportei e aconcheguei  no meio de um monte de folhada – a ver se se safa porque com esta primavera chuvosa não faltam lesmas a fazer mossa pela horta.

Já agora alguém sabe que espécie é esta?????

The hungry gap

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Os ingleses batizaram com esta expressão, significando qualquer coisa como intervalo da fome, o período algures  entre meados do inverno e meados da primavera em que a produção hortícola é muito menos abundante. Se é particularmente adequada para o clima inglês não deixa de ter algum significado por estas bandas. No meu caso o ano passado fez-se sentir com maior expressão em março quando o que colhi da horta se resumiu a pouco mais que alho francês e espigos de couves (rebentos das pencas depois de cortadas as cabeças). E por esta altura tinham também acabado as abóboras e as batatas doces. Parte do problema creio que passou por uma planificação algo deficiente e em não ter espécies que aguentassem a invernada e que respondessem bem aos primeiros sinais de condições mais favoráveis ao crescimento. Penso que este ano a coisa será melhorzita mas ainda há uma série de problemas a resolver – questões de quantidade (plantei menos do que devia) e época de plantação. Se para a plantação das coisas mais tradicionais tenho sempre os vizinhos para me orientar, já para coisas menos comuns tenho de ir fazendo por tentativa/erro e começar a perceber em profundidade a especificidade desta área, o seu microclima,  até começar a acertar. A complicar a gestão da coisa a quase inexistência de uma verdadeira primavera e outono complica e de que maneira as condições para  que as sementeiras germinem e os transplantes se desenvolvam antes do frio ou calor se instalarem.

De qualquer forma tenho uma série de culturas que me parecem interessantes para o  hungry gap e que vou apostar ainda mais para o próximo ano:

#Folhas de salada (para algo mais que a alface)  – canónigos, agrião de terra e água, rúcula, claytonia (uma das minhas descobertas on line, no caso no site britânico seedaholic (estes são viciados em sementes ih ih). Encomendei pelo terceiro ano consecutivo e têm sido sempre impecáveis. O site tem montes de informação e cada variedade de sementes é acompanhada de um folheto informativo super completo.

#Chicórias – este ano rendi-me às chicórias – pão de açúcar, rossa de treviso, palla rossa – fantásticas depois de uma geadinha. Prefiro-as para cozinhar (salteadas por exemplo) mas há quem as use em cru.

#Acelgas espinafres (espinafres perpétuos) e acelgas – da família das beterrabas são uma autêntica fábrica de folhas aguentando-se bem durante o inverno. Semeadas e transplantadas na primavera são bienais, começando a espigar no segundo ano lá para finais de março/abril mas podendo-se continuar a tirar folhas. Geralmente deixo-as ir para semente e lá se vão auto semeando.

#Brocolinni – variante dos bróculos com botões florais mais pequenos

#Mostardas orientais (Brassica juncea)  e Couves orientais (chinesa, pak choi, mibuna, komatsuna,…) – maravilhosas com sabor algures entre os grelos e as nabiças  (também no seedaholic)

#Couves kale – há diversas variedades e pelo que li os botões florais que parece começarem agora a despontar também se comem. Das que tenho aprecio particularmente a variedade tradicional italiana Cavolo Nero e a variedade tradicional escocesa Dwarf Blue Curled. Penso que estarão relacionadas com a nossa veterana couve galega mas na minha opinião são mais doces e tenras. Para além do sabor fazem um vistaço na horta e fazer um jardim de diferentes couves já andou mais longe dos meus planos (alinhas Samuel? afinal a ideia surgiu do teu encanto pelas couves).

#Outras culturas incluem espinafres (ingleses) que preferem o tempo mais fresco da primavera ou outono ao contrário dos mais “tradicionais”  espinafres da nova zelândia (que na realidade são uma espécie completamente diferente) e que são mais resistentes para o calor, e ainda o espinafre vermelho (orach) e a celtuce (alface chinesa).

A diversificação de culturas é importante e não apenas do ponto de vista da biodiversidade – num futuro próximo em que as mudanças e oscilações climáticas são uma incógnita ter um maior número possível de culturas e/ou diferentes variedades das culturas mais tradicionais que se adaptem e produzam nestas circunstâncias é fundamental. Entretanto já chegaram da seedaholic mais 4 ou 5 novas espécies a experimentar. Ok é oficial um vício nunca vem só.

Cebolas, batatas, pencas (a.k.a. tronchas) e chuchus. E ainda mais chuchus.

 

 

Apesar de alguns contratempos de que falarei num outro post, a horta continua a bombar. Já não sei quando foi a última vez que comprei vegetais incluindo batatas, cenouras e cebolas. O stock de cebolas afinal ainda dura, embora o que ainda há já esteja a grelar. Provavelmente era uma variedade menos interessante para conservação. Entretanto seguindo os preceitos populares – Pelo S. Martinho semeia o teu cebolinho –  lá semeei algumas variedades de cebola pelo minguante de novembro, como aconselha o almanaque O Seringador. Não sendo (para já) crente nem descrente da influência lunar sobre as coisas da terra mal não há-de fazer. Para além da valenciana, que aparentemente é uma variedade mais adequada para conservação, semeei a espanhola Roja de Zalla (obrigada Flor) e semente da minha “madrinha” hortícola (obrigada D. Delfina).

Entretanto continuo com as minhas experiências no cultivo da batata. O ano passado semeei as primeiras em finais de dezembro/início de janeiro e a coisa não correu mal. Este ano já semeei há coisa de 1 mês (via referência do Borda d´Água) um pequeno canteiro com duas variedades – uma branca de que não sei a raça mas que guardei dum punhado que nos deram na primavera (obrigada Arnaldo) e umas quantas Marine (obrigada Flor e mãe da Flor) que estavam já greladas e a pedir terra. É curioso que em meados de novembro tinha uma série de batateiras que germinaram de batatas extraviadas na colheita e que ainda me deram umas batatinhas antes de morrerem com a geada que entretanto caiu. Tenho ideia que começaram a aparecer  aí por setembro daí que para o ano hei-de experimentar semear algumas lá para agosto. A ver. Pena é a quantidade de batatas não ser suficiente para chegar ao natal.  O acompanhamento, as pencas como lhes chamam na minha terra ou tronchas como lhes chamam por aqui, estão a engordar como se quer. Pior são os grelos – com o calor e a falta de chuva não foram nem regalo para os olhos nem para a boca. Entretanto andei a semear mais uns retalhos em finais de outubro  a ver se medravam… mas a coisa não parece muito promissora.   Para compensar colhi em novembro para cima dos 100 Kg (bem foram 103 mas pronto…) de produtos, recorde a bater os 74 Kg de setembro do ano passado. O maior contributo para esta quantidade foram os  chuchus. A produção pesada até ao momento dos dois pés de chuchus plantados em 2016 já soma mais de 50 Kg e ainda tenho duas caixas cheias por pesar. Sopa com chuchu, creme de chuchu, chuchu salteado, chuchu estufado, chuchu assado, chuchu cru… o chuchu tem provado a sua versatilidade culinária  – falta experimentar frito mas cheira-me que feito tipo peixinhos da horta ou tipo patanisca não deve ficar nada mal. Para o nosso jantar em breve, a acompanhar um arroz malandrinho de troncha.